🎨 Análise crítica do quadro Independência ou Morte: entre a História e a imagem idealizada
Introdução
Quando falamos sobre a historia do Brasil, o 7 de setembro de 1822, data oficial da Independência do Brasil, é comum que a primeira imagem que venha à mente seja o famoso quadro Independência ou Morte, pintado por Pedro Américo entre 1885 e 1888. Essa obra, também conhecida como O Grito do Ipiranga, é um dos símbolos mais populares da história brasileira. Mas será que o que vemos nessa pintura realmente aconteceu daquele jeito?
Para responder a essa pergunta, precisamos entender o contexto histórico em que a obra foi feita, o que ela representa e o que ela esconde. Vamos analisar o quadro de forma crítica, identificando o que ele mostra, o que ele esconde e por que ele foi pintado dessa forma.
📌 Por que o quadro foi pintado?
A obra foi encomendada pelo governo da província de São Paulo para decorar o salão de honra do Monumento da Independência (hoje conhecido como Museu do Ipiranga ou Museu Paulista da USP), que estava em construção no final do século XIX.
O objetivo era claro: valorizar São Paulo como “berço da Independência” e exaltar a monarquia brasileira. Naquele momento, a monarquia estava em crise, o Brasil vivia as últimas décadas do Império e a elite política queria reforçar a importância da figura de D. Pedro I como herói fundador da nação.
Pedro Américo, que era um pintor muito respeitado e também intelectual, aceitou essa missão e produziu uma obra no estilo nacionalista e romântico, idealizando a cena para passar uma mensagem de grandeza e heroísmo.

Link. Acesso em: 21 ago. 2025.
🖼️ O que o quadro mostra?
No centro da pintura, vemos D. Pedro I montado em um belo cavalo, usando uniforme de gala e erguendo a espada, como se estivesse proclamando com firmeza: “Independência ou Morte!”.
Ao seu redor, aparece uma comitiva de cerca de quarenta homens, também montados em cavalos, com chapéus erguidos em sinal de apoio. Ao fundo, vemos um grupo de soldados com espadas levantadas, os chamados “Dragões da Independência”.
No lado esquerdo da cena, três figuras populares aparecem como observadores: um homem com um carro de boi carregado de toras, um cavaleiro simples e um homem negro guiando uma mula, de costas para o grupo principal. Um pequeno casebre aparece ao fundo, conhecido como “Casa do Grito”.
Na cena, D. Pedro I aparece ao centro, com a espada erguida, cercado por uma comitiva elegante e por soldados perfilados. O cenário é amplo, organizado e heroico; a paisagem mostra-se tranquila, enquanto o riacho do Ipiranga surge em primeiro plano, completando a representação da proclamação — tudo remete às pinturas históricas europeias.

Link para a página original. Acesso em: 21 ago. 2025.

Página original no Wikimedia Commons. Acesso em: 21 ago. 2025.
🔍 Desconstruindo a imagem idealizada
Apesar de parecer muito realista, o quadro é uma construção artística, não um retrato fiel do que realmente aconteceu. Vários elementos da pintura são invenções ou exageros, usados para criar uma cena heroica. Vamos analisar alguns deles:
- Cavalos de guerra: Na pintura, D. Pedro e sua comitiva estão montados em cavalos grandes e fortes. Na realidade, eles viajavam em mulas, que eram mais resistentes às estradas íngremes e de terra da época.
- Uniformes de gala: Todos estão vestidos como se fossem participar de uma cerimônia oficial. Mas, na verdade, a viagem era longa e cansativa. Eles usavam roupas simples e confortáveis, próprias para cavalgadas.
- Comitiva numerosa: O quadro mostra dezenas de pessoas ao redor de D. Pedro. Mas os registros históricos indicam que o grupo era pequeno e não tinha quarenta pessoas naquele momento.
- Dragões da Independência: O grupo de soldados com uniforme e espadas levantadas só foi criado um ano depois da Independência. Eles não existiam em 1822.
- A postura de D. Pedro: Ele aparece firme, saudável e imponente. Porém, segundo relatos, D. Pedro estava passando mal naquele dia, com dores estomacais por causa do calor e do cansaço da viagem.
- Casa do Grito: O casebre que aparece no fundo não existia em 1822. Ele foi construído por volta de 1884.
- O próprio Pedro Américo: Alguns estudiosos dizem que ele se desenhou no quadro, como o homem de cartola com guarda-chuva no canto direito. Mas, como nasceu em 1843, ele não poderia ter presenciado o evento.
Esses exemplos mostram como a pintura é uma idealização. Pedro Américo estudou o local, leu documentos e fez esboços, mas não queria apenas “mostrar como foi”. Ele queria criar uma cena simbólica, que servisse como propaganda da monarquia.
🚫 Quem está de fora do quadro?
Além dos exageros e invenções, o quadro também mostra quem foi excluído da memória oficial da Independência. Observe que:
- Leopoldina, que teve papel fundamental no processo político da Independência, não aparece na pintura.
- Mulheres, negros, indígenas e pobres estão ausentes ou aparecem como figuras distantes, sem voz e sem ação.
- O homem negro com a mula, que caminha na direção contrária da cena principal, simboliza a exclusão das pessoas escravizadas do processo de independência.
Essas ausências revelam que a Independência, como foi retratada no quadro, era uma história contada pela elite e para a elite, ignorando a participação e a realidade da maioria da população.

Página original no Wikimedia Commons. Acesso em: 21 ago. 2025.
Mudanças e permanências após 1822
- Mudanças: ruptura formal com Portugal; criação de um Estado independente; novos simbólicos nacionais (como o próprio quadro) e maior autonomia diplomática.
- Permanências: escravidão seguiu até 1888; elites agrárias mantiveram o poder; participação política continuou restrita; a maioria — negros, indígenas, mulheres e pobres — permaneceu fora da cidadania efetiva.
📌 Conclusão: o quadro é história?
Independência ou Morte é mais do que uma obra bonita: é um instrumento de memória. Ao escolher cavalos reluzentes, uniformes impecáveis e um D. Pedro triunfante, a pintura constrói uma versão heroica do 7 de setembro e ajuda a legitimar a monarquia e o protagonismo das elites. Ler esse quadro criticamente nos ensina duas coisas:
- A Independência do Brasil foi um processo — com pressões, conflitos e negociações —, não um instante mágico.
- A ruptura política não alterou de imediato as desigualdades sociais: a vida de escravizados, mulheres, indígenas e pobres quase não mudou naquele momento.
O quadro Independência ou Morte é uma obra de arte muito importante e bonita, mas não é uma fotografia dos fatos. Ele mostra como a elite do século XIX queria que o povo lembrasse da Independência: como um ato heroico, pacífico e liderado por um príncipe forte e justo.
Assim, a tela funciona como espelho do projeto de país de quem a encomendou. Ao mesmo tempo, vira uma fonte histórica para pensarmos como e por quem a nação foi narrada. Trazer as vozes ausentes para o centro do estudo — Mulheres, negros, grupos populares e povos indígenas — é passo essencial para uma educação histórica mais justa e completa.
📚 Referências
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LIMA Jr., Carlos; SCHWARCZ, Lilia Moritz; STUMPF, Lúcia Klück.
O sequestro da independência: uma história da construção do mito do Sete de Setembro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. -
DOMINGUES, Joelza Ester. “O Grito do Ipiranga: uma fraude?”. Blog Ensinar História. Disponível em:
https://ensinarhistoria.com.br/o-grito-do-ipiranga-uma-fraude/.
Acesso em: 2025. -
UOL EDUCAÇÃO. D. Pedro no cavalo: nem tudo é verdade no quadro da Independência no Brasil. UOL Educação, 07 set. 2023. Disponível em:
https://educacao.uol.com.br/noticias/2023/09/07/d-pedro-no-cavalo-nem-tudo-e-verdade-no-quadro-da-independencia-no-brasil.htm.
Acesso em: ago. 2025. -
AMÉRICO, Pedro. Independência ou Morte. 1888. Museu Paulista. Disponível em:
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Pedro_Am%C3%A9rico_-_Independ%C3%AAncia_ou_Morte_-_cores_ajustadas.jpg.
Acesso em: 21 ago. 2025. - SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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